Publicada em 13/7/2008
Cidades Garimpo no lixo ainda é ganha-pão
Em Cosmópolis, famílias recolhem objetos descartados para vender como reciclável e, assim, completar o orçamento
Rodrigo Maia
DA AGÊNCIA ANHANGÜERA
Após quatro décadas dedicadas basicamente à lavoura de cana e à construção civil, Luiz de Carvalho, de 71 anos, tem uma árdua missão para aumentar o orçamento familiar. Duas vezes por semana, geralmente às segundas e terças-feiras, levanta ainda de madrugada e, ao lado da esposa, Ermelinda de Carvalho, de 73 anos, dirige-se ao depósito de lixo de Cosmópolis para garimpar objetos recicláveis. “Esse aqui é meu ganha-pão”, aponta para o monte de lixo recolhido. Juntos conseguem, em média, R$ 100,00 por dia de garimpo. “Esse dinheiro é para comprar meus remédios”, avisa ele, que sobrevive com dois salários mínimos de aposentadoria, um seu e o outro de Ermelinda.Às 6h30, marido e mulher, juntamente com o filho Ademar Luiz de Carvalho, de 46 anos, iniciam a peneira em meio a urubus, mosquitos e um odor enjoativo, fruto do chorume do local. Plásticos, papelão, metais, papéis em geral e outros materiais são separados e colocados em sacolas de algodão. Sem forças para carregar os cerca de 30 quilos em cada uma, esperam pelo filho para levá-las até um ponto onde o caminhão consiga estacionar.Duas horas depois, chega o momento da pausa. É a hora de comer o pão com mortadela, preparado no dia anterior. “Saco vazio não pára em pé”, brinca. Já alimentados, continuam a dura missão de encontrar algo que possa ser transformado em dinheiro. Rostos castigados pelo sol. Roupas sujas e impregnadas pelo chorume. Luvas não menos encardidas. Bonés, que de tanto protegerem, tornaram-se testemunhas do espinhoso trabalho. Quando deveriam curtir a terceira idade com tranqüilidade, como sempre sonharam, necessitam complementar a renda com um trabalho pesado.Próximo ao almoço, esperam a carona de volta para o lar. A fome já apertou, mas o casal opta pela refeição em casa. “Com esse cheiro, fica impossível almoçar”, observa. Enquanto isso, o filho separa alguns pisos inteiros em meio à sucata oriunda de uma construção. “Pego no lixo porque não tenho dinheiro. Está muito caro para construir”, diz.Roleiro, como ele próprio se define, dirige-se ao depósito de lixo algumas vezes por mês para pegar entulho. “Tem que lutar para sobreviver.” A experiência que adquiriu no tempo em que trabalhou como servente de pedreiro, permite calcular o quanto poderá cimentar com as peças garimpadas. “Acho que consigo uns cinco metros (quadrados). É para fazer uma área em casa”, conta. Para ele, o lixo de Cosmópolis é pobre em relação a outras cidades. “As pessoas garimpam ainda nas lixeiras da cidade. O que chega aqui é o resto do resto”, completa.A carona aparece e chega o momento de partir. Ademar coloca a “bagagem” na carroceria. Os três seguem para a cidade, onde deixarão o material reciclável num depósito, sem qualquer perspectiva de um futuro melhor a curto ou a longo prazo. Desconfiança e vergonha fazem parte do trabalhoEm um primeiro momento, Luiz e Ermelinda de Carvalho não assumem que garimpam lixo toda semana. Talvez por vergonha. Talvez por medo de serem proibidos de entrar no local onde podem ganhar um dinheiro extra. “Estou de folga. Vim passear aqui”, diz Luiz. O casal descansa em um pequeno matagal e desconfia que a reportagem da Agência Anhangüera seja algum fiscal da Prefeitura. Durante a conversa inicial, Carvalho afirma viver de sua aposentadoria e da troca de discos. “De música sertaneja, eu conheço tudo. Se precisar, conto toda a história.” Ao perceber a máquina fotográfica pede para que o fotografe perante à coletânea antiga. “O que vão achar de mim se me verem em meio a esse lixo?”, indaga. Próximo ao almoço, o casal encontra-se perto da entrada do lixão. À espera da carona, nega qualquer tipo de relação com o lixo disposto ao redor. “Isso é para o caminhão aterrar depois”, desconversa ele. O caminhão do depósito, que receberá o material colhido, uma dezena de sacos carregados, aponta na entrada. Envergonhado, o aposentado confessa. “Isso é meu (o lixo recolhido). É para pagar meus remédios. Aquele ali (aponta para Ademar Luiz de Carvalho) é o meu menino que carrega a mercadoria.” (RM/AAN)
Paixão pela música ajuda a colocar vida no ritmo
Durante a época em que trabalhou de cortador de cana a motorista na Usina Ester, em Cosmópolis, Luiz de Carvalho adquiriu um terreno onde construiu sua casa própria. Dentre os cômodos, um cantinho especial foi reservado para uma de suas paixões: a música. No espaço, o aposentado garante ter 20 mil discos de vinil. Alguns comprados, muitos trocados e outros presenteados. Cerca de 10% pertence à coleção particular. “O que é de minha coleção não vendo por nada. Se oferecerem R$ 20 mil, eu recuso.” Para os outros LPs, cada um tem um valor de venda. Antigos podem sair, em média, por R$ 20,00.Nas portas dos armários destinados aos discos, fotos de artistas, novas e antigas, servem de decoração. Destaque para Sandy, disparada a preferida de Carvalho. “Sou muito fã dela. Só não gosto do Júnior”, brinca. Sob uma moda de viola no aparelho de 78 rotações, o aposentado se distancia da realidade dura do garimpo no lixão e passa horas arrumando as relíquias. “Cuido com muito carinho”, explica. O sonho é obter o primeiro disco do Roberto Carlos. “Até já encontrei num sebo em Campinas. O dono pediu R$ 4 mil e achei caro. Espero ser presenteado um dia”, completa. Todos os dias, Carvalho apresenta um programa na Rádio Municipal de Cosmópolis sobre música sertaneja antiga. O trabalho não lhe rende um dinheiro extra. “Mas posso fazer propaganda dos meus discos”, contenta-se. A mulher, Ermelinda, passa boa parte do tempo ouvindo o radinho que encontrou no lixo. A aposentada prefere as músicas sertanejas mais recentes. “Gosto muito do Menotti (da dupla César Menotti & Fabiano) e do Gino e Geno.” Além do aparelho, ela já achou vários relógios. Inclusive, utiliza um para não perder a hora de seus programas favoritos. (RM/AAN)
Renda extra garante o remédio para muitos males
Luiz de Carvalho teve três enfartes, possui as mãos deformadas, vítima de um reumatismo, está com pedras na vesícula e não possui a arcada dentária completa. Mesmo assim, é com esse histórico que o aposentado vai em busca de renda para aumentar o orçamento familiar. E, justamente, como afirma, para garantir os medicamentos de que precisa.Todos os dias, precisa ingerir cinco comprimidos para combater os problemas cardíacos e as dores recorrentes das duas pedras na vesícula. Por causa delas, Carvalho está desiludido com a vida. “A dor das pedras é insuportável. Não há posição confortável”, relata.Depois de fazer os exames necessários para uma cirurgia, ouviu do médico que não havia data disponível na agenda para realizar a intervenção. “Agora, entrego para Deus. Quando Ele quiser, Ele me leva”, desabafa. Quando precisa de auxílio, geralmente durante a madrugada, recorre à esposa, com quem está casado há 48 anos. “É ela que me socorre. Levanta e vai buscar o comprimido, porque eu não consigo”, observa. Ermelinda também já teve um sério problema de saúde. Há dez anos, retirou o útero. A aposentada não sabe explicar a causa, porém credita ao tempo trabalhado na lavoura de cana. “A vida de cortador de cana é muito cansativa. Talvez isso tenha causado esse problema”, diz. (RM/AAN)